Há alguns anos atrás, a minha vida era ótima. Eu vivia numa linda casa com minha esposa e meu filho, e tinha um ótimo emprego num supermercado da cidade. Não era o melhor emprego do mundo, mas eu gostava de trabalhar lá. Meu filho estudava numa das melhores escolas da cidade, e me deixava mais alegre e encantado a cada dia com sua inteligência. Se eu pudesse reviver essa época, não mudaria nada. Minha vida era perfeita.
Depois dessa história, você certamente está esperando que alguma tragédia aconteça e eu acabe perdendo tudo o que amo e descendo até o fundo do poço, não é? Afinal, eu não estaria contando essa história se ela tivesse um final feliz. Você não está errado. Permita-me continuar a história.
Quando o meu filho tinha nove anos, ele adoeceu. Desde o início, eu pensei que nós conseguiríamos vencer as dificuldades, e voltaríamos a sorrir como sempre. Eu estava errado. Ele tinha câncer, e nós não tínhamos dinheiro suficiente para pagar o tratamento. Eu o vi morrer no hospital, olhando para mim, e me culpo até hoje por isso. Se eu tivesse mais dinheiro... Se eu tivesse arranjado um emprego com um salário melhor... Perdão. Estou divagando. Onde eu estava mesmo? Ah, sim.
Depois daquilo, tudo foi de mal a pior. Minha esposa não me amava mais. Ela também me culpava pela morte de nosso filho. Ela gastava nosso dinheiro em jóias e roupas caras para "se sentir melhor", como ela mesma dizia. Nosso, não. Meu dinheiro. Ela gastava o meu dinheiro com coisas fúteis porque tinha raiva de mim. Algum tempo depois disso, ela começou a sair de casa sem me explicar o porquê. Descobri o motivo um mês depois. Ela estava me traindo com o vizinho. Eu me lembro até hoje de nossa briga depois que eu descobri. Ela dizia que não me amava mais, que eu era culpado pela morte do nosso filho, e que não queria mais morar comigo. Eu a xinguei de todas as maneiras possíveis, e nos separamos logo depois. Ela foi morar com o desgraçado. Era horrível quando eu a via da janela da minha casa. Certa vez, senti vontade de matá-la, porém, eu tinha certeza de que não era capaz disso.
Passei a frequentar bares e gastei todo o meu dinheiro com bebidas. Tudo o que queria era esquecer de tudo o que aconteceu. Fingir que a minha vida ainda era boa, que eu ainda tinha uma família. Mas eu não conseguia esquecer, e o álcool não ajudava em nada. De tanto faltar ao trabalho pra beber, eu fui demitido. Depois de um tempo, não me sobrara nada a não ser uma casa completamente suja e cheia de garrafas de cerveja vazias. Então eu decidi. Eu voltaria para o lugar onde cresci, e então, me mataria.
Eu sei que essa não parece a melhor ideia do mundo, mas eu não tinha outra saída, ou pelo menos pensava assim. Eu cresci numa pequena fazenda um pouco longe da cidade onde morei com minha esposa, e nós três sempre íamos para lá nas férias. Perto da casa onde eu morava quando criança, havia um penhasco enorme. Eu gostava de sentar perto dele e olhar o que tinha lá embaixo, mas eu sempre tive medo de cair. Mas não hoje. Eu pularia daquele penhasco, e daria um fim no mínimo decente a minha vida insignificante. Peguei o meu carro e comecei a dirigir. Já estava de noite quando o carro parou no meio do caminho. Não foi algo inesperado, afinal, eu não tinha dinheiro pra comprar gasolina e o carro estava há tanto tempo na garagem que havia uma grossa camada de poeira no capô. Larguei a droga do carro no meio da estrada e comecei a andar até o local. "Foda-se, eu vou morrer mesmo", foi o que eu disse a mim mesmo.
Algumas horas se passaram, e eu ainda não havia chegado no local. Eu estava bem cansado, mas não dei a mínima. "Não andei tudo isso pra morrer no meio da estrada", eu disse em voz alta para mim mesmo novamente. Eu continuei andando, sem me preocupar com o risco de ser atropelado. Não havia carro nenhum numa estrada como essa a essa hora da madrugada, e eu era provavelmente o único ali.
Foi quando eu a vi.
No meio da estrada, caminhando na minha direção, estava uma criança. Era uma garotinha de pele clara, cabelos loiros e olhos tingidos de um azul profundo. Estava usando um vestido, e carregava um lampião em sua mão esquerda, que me permitiu ver seu rosto. Ela não usava sapatos. Eu olhei pra garota e parei de andar. Ela fez o mesmo, e me olhou nos olhos.
- O que uma criança está fazendo numa estrada a essa hora da madrugada? - Perguntei. Eu não esperava por uma resposta, mas estava curioso.
- Eu é quem deveria te perguntar. - Respondeu a garota. Sua voz era doce e suave como um sussurro.
- Como assim?
- O que você está fazendo nessa estrada a essa hora, William Turner? - Senti um arrepio percorrer meu corpo quando ela disse o meu nome. Sua voz ecoou por toda a estrada, e eu resisti ao impulso de sair correndo e perguntei mais uma vez:
- Como? - Eu tinha entendido perfeitamente cada palavra dela, mas eu não consegui dizer outra coisa. O fato daquela criança saber o meu nome estava me assustando.
- Eu sei quem você é. Sei do que aconteceu com seu filho, sei que a sua esposa teve um caso com seu vizinho, enfim, eu sei quem você é.
Eu fiquei em silêncio por um momento.
- Não sei do que está falando. - A essa altura, eu já estava branco de medo. Como essa pirralha sabia de tudo isso? Ela era um fantasma maluco ou o quê?
- Chega de joguinhos, Will - A garota se aproximou de mim -, responda a minha pergunta. - Eu pensei um pouco antes de respondê-la.
- Eu não quero mais viver. Vou pular do penhasco e acabar com essa merda de vida. - Respondi. Eu já não ligava mais se ela era um monstro, fantasma ou alguma coisa do tipo, só queria acabar logo com a minha vida.
Então, a luz do lampião se apagou por alguns segundos. Eu nunca senti tanto medo em toda a minha vida.
Eu não sei explicar direito o que aconteceu. Todas as luzes ao meu redor se apagaram e eu estava na completa escuridão. Eu não conseguia ver a garota, nem a estrada, e nem as árvores. Por algum motivo, até mesmo as estrelas e a Lua haviam sumido. E então, alguns segundos depois, o lampião acendeu novamente, e lá estava a garota, mais perto de mim do que da última vez que a vi.
Eu não consegui falar nada, e o silêncio pairou no ar por cerca de dez segundos, até que ela finalmente o quebrou.
- Eu posso ajudar você, Will. Posso fazer com que nada disso tenha acontecido.
Então, eu disse o que queria dizer desde que ela falou meu nome pela primeira vez.
- O que você é?
Novamente, eu não sei explicar com clareza o que aconteceu.
A garota me olhou nos olhos e sorriu. Em seguida, ela levantou a cabeça para o alto, virando o rosto para cima. Pelo o que consegui ver pela luz fraca do lampião, ela tinha um segundo rosto abaixo da face humana. "Rosto" não é a palavra certa pra se referir a aquela coisa, mas eu não consigo pensar em outro termo. O rosto era escuro como o céu noturno, e não possuia olhos nem nariz. Tudo o que havia nele era uma boca cerca de três vezes maior que a de uma pessoa normal. A boca era cheia de dentes brilhantes e extremamente afiados e tortos, que estavam espalhados pela boca de um jeito anormal.
Ela - na verdade, acho que "aquilo" seria mais apropriado - deu um passo a frente e continuou a falar.
- Isso não importa agora. Voltando ao assunto, eu posso ajudar você. Suicídio seria um desperdício para alguém como você. - A voz da garota, ou seja lá que porra que era aquilo, estava completamente diferente. Ela ecoava por todo o lugar como se fosse um trovão, e a cada palavra eu sentia como se minha cabeça estivesse prestes a explodir. Eu não consigo explicar mais do que isso. Até hoje, toda vez que me lembro daquela voz, sinto calafrios percorrerem meu corpo.
- Me ajudar como? - Eu queria fugir, mas não conseguia. Seja lá o que "ela" fosse, certamente conseguiria me alcançar.
- Eu posso fazer com que nada disso tenha acontecido. Seu filho nunca ficaria doente e nem morreria. Sua esposa nunca te largaria e você nunca perderia o seu emprego. Nada disso aconteceria, eu te garanto.
Eu pensei por um momento. Se aquilo estivesse dizendo a verdade, seria incrível. Mas, certamente, um preço seria cobrado.
- O que eu preciso fazer? - Falei alto, tentando esconder o medo.
- Apenas diga "sim".
Aquilo era bom demais para ser verdade. Eu não tinha outra escolha. Era aceitar o acordo, ou me suicidar. Eu estava disposto a oferecer a minha alma ou o que quer que fosse.
Eu fiquei em silêncio novamente, e finalmente disse:
- Sim.
A coisa sorriu. E disse algo que eu não consegui compreender, mas que está até hoje gravado na minha mente.
Eu não me lembro de mais nada depois disso. Só lembro que eu acordei no meio daquela estrada, e o Sol já havia nascido. Eu me levantei e corri de volta a minha cidade. Ao chegar em casa, vi pela janela uma silhueta. Entrei correndo, pensando que a minha vida era perfeita novamente e minha esposa e meu filho me esperavam em casa, e tomei um susto. Eu havia atravessado a porta de minha casa, caindo no chão. Eu me levantei e olhei ao redor, e me assustei novamente. Eu não conhecia nenhuma das pessoas que estavam ali. Várias pessoas que nunca vi estavam dentro da minha casa. E o pior: Elas não conseguiam me ver. Era como se eu fosse um fantasma. Minhas mãos as atravessavam. Eu procurei a minha esposa na casa do vizinho. Ela não estava lá. Eu percorri toda a cidade procurando alguma resposta. Ninguém conseguia me ver e interagir comigo. Então a ficha caiu.
Ela disse que iria fazer com que nada tivesse acontecido. Outras pessoas moravam na minha casa, ninguém conseguia me ver.
Ela me apagou da existência. E, consequentemente, nunca me casei. Nunca tive um filho, e ele nunca morreu de câncer. Minha esposa nunca se separou de mim pra ir morar com o vizinho, tudo isso porque eu nunca existi.
Eu entrei em desespero. Eu passei a andar sem rumo, procurando alguém que pudesse me ver. Devem ter se passado meses, ou até anos, até que eu encontrei.
Parecia ser um homem. Porém, ele estava extremamente magro, e sua pele estáva pálida como a Lua, assim como seus cabelos. Ele estava sentado no meio-fio, chorando, com as mãos nos olhos.
Quando eu o abordei, ele me encarou. Pude ver os seus olhos, que eram escuros como a noite, olhando de um certo ângulo, nem parecia que haviam olhos ali. Ele sussurrou apenas duas frases enquanto me encarava com seus olhos escuros, e então voltou a chorar.
- Ela nos apagou desse mundo. - Disse o homem, numa voz chorosa - Ela nos assiste sucumbir a loucura, enquanto nos consome lentamente.