É engraçado como a coisa mais notável após um grande barulho é o silêncio. Quanto mais forte for o barulho, mais profundo será o silêncio que se segue. A primeira hora do apocalipse nuclear foi turbulenta, o bunker tremeu inúmeras vezes ao nosso redor e eu sinceramente temi que a velha estrutura não fosse de fato resistir como se esperava em sua construção, mas no fim ela se mostrou mais forte do que realmente parecia.
A terra chacoalhou, as luzes piscaram diversas vezes mais, parecia que um verme gigante estava rastejando no interior do solo, com raiva após ter seu longo sono interrompido. Nós realmente tememos que o fim iria chegar também para nós, que havíamos sido precipitados em acreditar que estávamos a salvo, mas então o barulho enfim parou e caiu o silêncio, como uma mortalha feita de aço e concreto.
Mantivemos nossos ouvidos atentos esperando novos tremores, acreditando que novas bombas seriam lançadas, mas não havia mais nada. A guerra havia terminado e quem quer que houvesse sobrevivido, se alguém tivesse sobrevivido, estava tentando entender o que havia acabado de acontecer e percebido a terrível verdade assim como nós: o mundo havia acabado.
Malik sentou-se à mesa da nossa sala de estar durante a primeira hora e chorou um pouco, muito provavelmente pensando na mãe que morava em Manhattan e estava cuidando de sua avó doente nos últimos meses. Pensei em me aproximar e tentar confortá-lo mas desisti da ideia. Ele não falou nada, mas nos milésimos de segundo em que trocamos um olhar, durante um abalo realmente forte em que sentimos medo e pensamos que morreríamos, eu pude ver a mais profunda raiva em seus olhos e algo mais obscuro: a sombra da mágoa. Talvez ele até mesmo desejasse que o bunker cedesse e acabássemos morrendo. Ele não se importava se eu havia errado em meus cálculos e não tivesse controle nenhum sobre aquela situação, sendo meramente um espectador distante. Para ele, eu poderia ter salvo sua família e ele me odiava por isso. Talvez ele me culparia para sempre pela morte deles e foi doloroso pensar nisso, mas eu não o ajudaria, não iria destruir a mim mesmo me sentindo culpado.
Éramos agora apenas ele e eu, quer ele gostasse ou não. Era bom se acostumar com a ideia ou se preparar para morrer sozinho pois essa era nossa única expectativa, nosso único pensamento sobre nosso futuro. Diferente de agora, no passado normal em um mundo normal, nossos planos eram fazer algumas reformas na casa pois ela já estava extremamente velha, comprar um outro imóvel – talvez na Europa. – para passarmos as férias, fazer um tour pelos castelos da Inglaterra e da França ainda no fim daquele ano e eu estava organizando uma festa de aniversário surpresa para ele junto com sua mãe e os irmãos. Eu queria visitar o parque temático do Harry Potter mais uma vez, ler todos os livros da minha biblioteca virtual, tomar banho de piscina no verão e ver as folhas amarelarem no outono. Agora a única coisa que se mantinha em nossa cabeça era: quanto tempo ainda temos? Quanto ainda duraremos?
Deixei minha mente vagar com esses pensamentos e também chorei um pouco, de forma silenciosa e discreta, apesar de Malik estar bem na minha frente e eu não ter como me esconder dele. Entretanto não parecia necessário, pois ele aparentava não dar a mínima para o que quer que eu estivesse sentindo naquele momento. Podia quase ouvir as palavras maldosas que ele pensava naquele momento: "Não sei porquê você está chorando... Você não perdeu ninguém! Você não tem ninguém. A não ser por mim, você está completamente sozinho no mundo, sempre esteve, e eu gostaria também de não estar aqui para aumentar ainda mais essa solidão. Fui eu em que perdi tudo." Mas ele jamais diria essas coisas em voz alta, por mais que eu soubesse que ele as estivesse pensando naquele exato momento. Era um dom especial, apesar de as vezes eu não saber se estava realmente captando o que as pessoas pensavam ou estava imaginando tudo aquilo.
— O que vem agora? – Ele questionou repentinamente me tirando de meu transe pessoal.
— Como? – Respondi meio abobado.
— O que faremos agora? – Ele perguntou de novo de forma mais rude. – Tipo, vamos apenas ficar aqui sentados esperando a morte?
Contive meu impulso de respondê-lo na mesma moeda, mas sabia que isso era inútil. Ele apenas estava em luto, confuso e com medo, completamente tomado por uma raiva irracional contra mim, o que não era certo, mas era perfeitamente natural além do mais alguém havia apertado o botão de restart e ferrado totalmente o mundo. Em uma situação dessas, quando alguém ferra com tudo e machuca quem nós amamos, buscamos alguém para culpar. Ele havia me escolhido, mas eu não cairia na dele. Ele estava manifestando sua Sombra e ela se tornaria cada vez mais forte se eu a alimentasse com brigas e confrontos. No fim nós dois seríamos consumidos pela nossa escuridão interior e acabaríamos nos matando. Então preferi apenas me manter em silêncio, ir até um dos vários armários na sala de estar e pegar uma caixinha de metal que depositei sobre a mesa redonda. De dentro tirei exatamente cem cartas que organizei afim de que ficassem totalmente visíveis. Malik me olhou curioso enquanto eu trabalhava em silêncio, então começou a ficar impaciente e disse:
— Isso é sério? O mundo acabou e você quer sentar aqui embaixo e jogar cartas?
— Não são cartas comuns. – Disse com a voz controlada que usava para lidar com pessoas irritantes. – E não vamos jogar nada.
Coloquei a última carta e as contemplei. As cem lâminas possuíam ilustrações coloridas, simbólicas, algumas fantasiosas que lembravam os desenhos animados dos anos 80. Malik não conseguiu disfarçar a curiosidade e se dobrou sobre a mesa para olhar atentamente cada uma das cartas do extenso baralho parecendo fascinado com o jogo.
— Qual o nome dessa coisa? – Disse num misto de admiração e medo.
As cartas narravam várias cenas e mostravam personagens conhecidos; algumas pareciam cartas comuns de jogos de RPG com poderes mágicos e ataques surreais, mas outras chamavam a atenção justamente por demonstrar eventos reais. As mais curiosas mostravam uma das Torres Gêmeas, no World Trade Center, sendo explodida e outra mostrava também uma explosão acontecendo desta vez no Pentágono, próximo a Washington, exatamente como havia ocorrido nos atentados de 11 de setembro há mais de vinte anos atrás. Outra mostrava um vazamento de óleo como em referência a explosão da plataforma petrolífera Horizonte das Águas Profundas – que pertencia á Petróleo Britânico – sediada no Golfo do México, responsável por derramar cinco milhões de barris de petróleo no mar. Algumas pareciam brincar com teorias da conspiração existentes na internet como mensagens subliminares na propaganda mundial e em músicas rodadas ao contrário assim como o controle da população mundial através de doenças fabricadas em laboratório. A grande maioria parecia apontar que todos os grupos e filosofias da sociedade eram na verdade controladas por algo maior, como os tais Illuminati, e os jogadores deveriam agir como eles para ganhar o jogo: controlar o maior número de grupos possíveis dentro da sociedade afim de ter o poder total.
Mas não era a lógica conspiracionista e absurda que havia prendido a atenção de Malik, mas sim as duas cartas que eu havia colocado propositalmente no centro do baralho: uma dizia "Terceira Guerra Mundial" sobre o desenho de uma explosão nuclear e a outra trazia a imagem de uma coluna de fumaça na forma de uma caveira pairando sobre prédios de uma cidade, dizendo "Redução populacional". Assim como as pessoas antes dele, ele estava convencido de que as cartas de alguma forma maluca e surreal previram o futuro, por mais que ele não fosse capaz de explicar como, e talvez não fossem objetos benéficos para se ter por perto.
— O que é esta coisa? – Ele disse definitivamente apavorado.
— Chama-se Baralho Illuminati. Foi criado em 1995 como uma jogada de mestre, se me permite o trocadilho, por um cara muito esperto que queria enriquecer rápido através do medo e conseguiu. – Respondi simplesmente. – Eu não sei como ele fez isso, se era um vidente ou apenas um bom observador político, ou talvez apenas os terroristas se inspiraram no baralho afim de cometer os atentados de 11 de setembro... Não há como saber, apenas é perceptível que as cartas previram com precisão os atentados da Al-Qaeda seis anos antes deles acontecerem assim como previram a tragédia marítima do Golfo do México quinze anos antes, apesar de que isso não era muita coisa para os mais céticos: O World Trade Center era um símbolo do poderio econômico americano no início dos anos 2000, possuindo os prédios mais altos do mundo indicando a opulência da América. Era de se esperar que, em um ataque terrorista, o local fosse escolhido como o alvo mais provável e ele já havia sido antes. Houve um ataque a bomba em 1993 no complexo de prédios... Acho que o criador do baralho apenas precisou ligar os pontos. O Pentágono por sua vez era símbolo do poder militar americano e, desde a Guerra Fria, circulava a teoria de que a base do Departamento de Segurança do Estado seria o ground zero, ou seja: o primeiro local a ser atingido por uma bomba no caso de uma guerra nuclear devido a sua importância estratégica. Os Estados Unidos não poderiam contra atacar sem seu quartel de operações. Quanto ao vazamento de petróleo, esse não era um evento tão incomum, poderia acontecer a qualquer momento, assim como os de outras cartas, e as pessoas mais cedo ou mais tarde iriam ligar tais eventos a poderes ocultos nestas cartas. Enfim, o criador do baralho foi um gênio e conseguiu o que queria, tendo enganado durante décadas os jogadores mais impressionáveis e criando uma fábrica de teorias da conspiração.
— Mas ele não parecia estar mentindo ao todo, não é? – Malik murmurou com os olhos ainda presos no baralho. – Além do mais a Guerra Nuclear realmente aconteceu como ele previu ou qualquer coisa do tipo. Apesar que isso também poderia acontecer mais cedo ou mais tarde...
— Não, ele não mentiu, apesar que ele mesmo não tinha ideia do que estava fazendo. Antes de encontrar os diários de Gregory Hilliand, eu achava que tudo não passava de coincidências em relação a esse baralho, como qualquer pessoa cética pensaria. Mas o fato é que realmente existe uma sociedade secreta que controla, ou controlava, o mundo, cada pequeno aspecto dele: o que pensávamos, o que sentíamos, o que queríamos, nossos gostos, nossas ideias, a esquerda e a direita política, os racistas e o movimento dos negros, os homofóbicos e a comunidade LGBT... Todos!
“Eles criavam as regras de como o mundo deveria ser, eles puxavam as cordas e traçavam os movimentos das peças pelo tabuleiro. Todos os líderes políticos, todas as celebridades, todos os grandes pensadores, estavam todos nas mãos deles sendo usados como faróis que a sociedade seguia cegamente.
Achávamos que cada um de nós defendia uma ideia e fazia parte de um grupo, mas no fim estávamos todos sendo usados no mesmo enredo, no mesmo teatro. Éramos entretenimento... Mas não apenas isso.”
— E como é que essa tal sociedade secreta havia adquirido tamanho poder para controlar o mundo todo? – Ele parecia incrédulo.
— Como todas as grandes respostas da vida, isso é bem simples: No início da organização da sociedade ocidental, quando os homens haviam abandonado as cavernas já há um tempo e pararam de andar de um lado para o outro em busca de recursos, quando nos fixamos nas primeiras cidades e aldeias, os representantes de grandes tribos se reuniram e observaram: o homem estava evoluindo a passos largos, criando um mundo em que ele viveria, mas esse mundo era um tanto caótico e desregrado. Havia vício, havia violência, as pessoas não se respeitavam e não conheciam ética, moral ou lei porque a lei ainda não existia. Então esses líderes tribais que dariam a luz às futuras dinastias reais resolveram assumir o controle. Eles já tinham o poder e o apoio de seus povos e se achavam no dever de guiar as pessoas rumo a uma sociedade pacífica, equilibrada e principalmente submissa, pois só pode haver controle se houver submissão e eles precisavam ter controle total sobre a sociedade para mantê-la estável.
Assim Eles criaram as leis, as regras, ensinaram a ética e a moral através da filosofia que foi aperfeiçoada com o tempo. Eles descobriram com a filosofia que poderiam controlar com o medo e o uso da força, mas as pessoas só se tornavam totalmente submissas às ideias que elas alimentavam, suas ideologias. Esse era o caminho mais rápido para controlar as pessoas e mantê-las alienadas: através da manipulação de pensamentos e das ideias. Aquele grupo de homens e seus descendentes perceberiam que as pessoas seriam capazes de matar e morrer por ideias, muito mais do que fariam por outros motivos como riquezas ou honra. Entenderam que a humanidade guerrearia por filosofias e seus símbolos, dariam suas vidas e se sacrificariam por aquilo que acreditavam.
Compreenderam que apesar do ser humano ter começado como um chimpanzé babão, em uma caverna, com medo do fogo, a sociedade seria facilmente construída e manipulada por ideais e então eles resolveram manter esse controle em suas mãos e passá-lo para seus filhos, mantendo uma longa linhagem protegida por todas as eras da história até os dias de hoje. Foram Eles que dominaram os homens através de suas posições e o civilizaram e era sua prole que continuava mandando e desmandando no mundo em que nós e nossos pais viveram. Nós vivemos repetindo as ideias e desejos que Eles colocaram em nós desde nosso nascimento.
Eles sempre se acharam os donos do mundo, e realmente eram, e por mais que se esforçassem para manter as coisas nos trilhos, a humanidade sempre acabava voltando para a degradação natural, para o estado de caos inicial. Por isso Eles tiveram a ideia de reiniciar o mundo, isso há muito tempo – talvez durante a o Iluminismo, daí terem sido apelidados de Illuminati apesar de não ter muito a ver com os verdadeiros Illuminati da Baviera. – querendo desta vez fazer do jeito certo e criar uma sociedade perfeita, apenas com os melhores.”
Fiz uma longa pausa após o fim do relato e esperei uma reação de Malik, que não veio. Ele apenas ficou sentado diante de mim com os olhos perdidos, eu podia ver as engrenagens funcionando na cabeça dele.
— Você deve estar se perguntando: Por que não antes? Por que apenas agora? Bem, a ciência era o deus que esses homens adoravam. Imagino a animação deles durante as grandes invenções e descobertas científicas da Belle Époque. Já faz muito tempo que Eles procuram uma forma de gerar destruição em massa afim de pôr em ação seu projeto e reiniciar a humanidade e Eles acreditavam que essa grande arma viria através da ciência, mas nunca acharam algo que fosse bom o suficiente, algo que estivesse a altura do que esperavam e queriam, até o fim da Segunda Guerra Mundial, o que leva nossa estória novamente para o Japão e onde o Dr. Gregory Hilliand entra nela.
“Diante do poder da bomba atômica, a tal sociedade secreta enfim encontrou o que acreditava ser a arma perfeita para matar toda a humanidade e empreender um novo começo. Esse foi o único motivo que os fez manter a sociedade de pé por tanto tempo, funcionando e gerando lucro: bancar pesquisas científicas cada vez mais sofisticadas que criariam a aniquilação da própria humanidade.
De certa forma as pessoas sempre trabalharam para a sua própria morte, devolvendo para a mão do Estado o dinheiro que recebiam, seja no capitalismo ou no socialismo, e tendo esse dinheiro usado para produzir uma bomba para cada ser vivo na Terra. Gregory acabou tropeçando nos planos desse grupo, apesar de já haver ouvido sobre ele, mesmo que indiretamente, através de seus pais: A Tradição, que os brancos racistas do Sul tanto defendiam, era apenas um exemplo das ideologias plantadas por Eles na sociedade ao longo da história afim de proteger os valores éticos e morais em que Eles mesmos acreditavam. Usaram pessoas como a família do cientista para manter viva na sociedade as ideias de superiores e inferiores, poder, controle, fé e submissão.
Paralela á sua pesquisa nuclear, Hilliand passou a ir mais a fundo na história da Tradição até que descobriu, pelo menos em parte, quem estava por trás dela e porque. E foi através dos escritos dele que eu fiquei sabendo de tudo. Após descobrir tudo isso, Gregory entendeu porque seu apelo na Casa Branca jamais seria aceito e porque os países do mundo jamais iriam parar de produzir bombas atômicas: Os donos do mundo precisavam delas para extinguir a humanidade.
Ele foi descoberto por Eles e tinha medo que o pegassem, mas o Dr. Gregory Hilliand jamais disse nada a ninguém e o que ele sabia jamais deixou as paredes da casa que havia lá em cima. Eles sabiam disso e por isso o deixaram em paz apesar de vigiá-lo o tempo todo, como faziam com todo mundo. Eles também acabaram descobrindo que eu sabia de tudo, por isso aqueles federais invadiram nossa casa momentos antes das explosões. Acho que estavam aqui para me matar antes que eu pudesse dizer algo. Por isso não contei nada a ninguém, nem mesmo a você. Estaríamos todos mortos de qualquer jeito.”
Não esperava que ele fosse exatamente me perdoar ou qualquer coisa do tipo ao dizer aquilo e nem havia dito com o intuito de convencê-lo a isso. Eram apenas os fatos. Malik entretanto pareceu ficar irritado e abandonou a sala de estar indo em direção ao corredor que levava aos outros cômodos, provavelmente procurando os dormitórios mesmo sem saber onde eles ficavam. Me ocupei em guardar o Baralho Illuminati e organizei meus pensamentos aproveitando o silêncio penetrante na sala ao meu redor. Ele agora sabia de tudo e era isso o que importava. Precisávamos saber o que estava por vir quando saíssemos daquele bunker e chegássemos a superfície, apesar de não fazer ideia de quando isso iria acontecer.